quarta-feira, 30 de julho de 2008

Um apólogo- Conto de Machado de Assis



Este conto é uma delícia machadiana, que me fez lembrar a minha bisa. Talvez pelas palavras, antigas, expressões que ela também usava, ou quer seja pela figura da linha e da agulha, já que costurava, ou tricotava todo o tempo. Antes dos noventa, ela ainda nos contava histórias, fábulas, pequenos contos, enquanto desembaraçava o cabelo meu e de minha irmã.
Pode ser que tenha nos contado essa de fundo moral. Não me lembro. O fato é que ao relê-la, transportei-me imediatamente para aquela época, tão nítidamente pude ver seus objetos sobre a cômoda, o copinho de vidro recendendo a aniz, o pequenino radinho de pilha inglês, que ela tinha tanto ciúmes, o crucifixo de ferro e tive saudades da bisa Alice.
Mas enfim, o Apólogo:

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
-Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa nesse mundo?
-Deixe-me, senhora.
-Que a deixe? Que a deixe por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça;
-Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
-Mas você é orgulhosa.
-Decerto que sou.
-Mas por quê?
-É boa! Porque coso. Então vestidos e enfeites de nosssa ama, quem é que os cose, senão eu?
-Você? esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
-Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
-Sim,mas que vale issso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vema trás obedecendo ao que eu faço e mando...
-Também os batedores vão adiante do imperador.
-Você imperador?
-Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante,vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou á casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou o pano, pegou a agulha, pegou a linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana- para dar a isto uma cor poética.
E dizia a agulha:
-Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo , eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e altiva, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando.E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic-plic da agulha no pano.
Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro,até que no quarto a cabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
-Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
-Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
-Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

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