sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A Revolução dos Bichos-George Orwell

Queridos amigos: Houve um lugar no mundo, onde os animais seguiam um criterioso mandamento: 1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo. 2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo. 3. Nenhum animal usará roupas. 4. Nenhum animal dormirá em cama. 5. Nenhum animal beberá álcool. 6. Nenhum animal matará outro animal. 7. Todos os animais são iguais. Posto isto, só nos resta o deleite de reconhecer nesse maravilhoso livro de Georte Orwell, personagens da revolução comunista, na extinta União Soviética. Imaginem um sítio onde os animais, explorados e maltratados pelo homem, resolvem criar uma sociedade mais justa e igualitária, onde todos seriam considerados verdadeiros "camaradas". Sob o comando de dois porcos revolucionários, em clara alusão á Trotsky e Stalin, os animais conseguem expulsar o fazendeiro, tomar o poder, e ensinam os sete mandamentos acima aos demais bichos, trocando o nome da granja para Granja dos Bichos. Para as ovelhas, animais de QI menos elevado, assimilarem o que estava acontecendo, resumem os sete mandamentos em "quatro patas bom, duas patas ruim". O hino "bichos da Inglaterra", criado pelos porcos, levava os animais às lagrimas. Para livrarem-se do jugo servil ao homem, os bichos nunca trabalharam tanto. Muito mais do que quando não eram livres. Constroem um moinho para gerar energia e prosperando, começam a vender seus produtos para os homens, sempre convencidos pelos porcos que pequenas concessões deveriam ser feitas em prol de um bem maior. Um dos porcos difama e expulsa seu antigo companheiro, que mesmo no exílio, sempre é citado como bode expiatório para tudo de errado que surge durante o solitário governo do porco ditador. Sempre convencidos de que os porcos tinham razão, mesmo quando tinham direito a regalias que os demais animais não desfrutavam, tais como ração diferenciada, usufruir dos luxos da casa do antigo fazendeiro, certa manhã, os animais acordam com uma novidade de cair os queixos: No local onde antes estava escrito os sete mandamentos da Animalia, agora apresentava as seguintes modificações: 4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis. 5. Nenhum animal beberá álcool em excesso. 6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo. 7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros. TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS- Apreciem amigos, todas as palavras e cada letra desta frase! Aclamado como líder pela unanimidade dos animais, o porco Napoleão, torna seu poder de fato por de direito, bane a canção dos Bichos da Inglaterra, as marchas dominicais, os desfiles, a cor da bandeira e dá a revolução por terminada, já que a sociedade teria atingido o ápice esperado. A granja passa a chamar-se Granja do Solar e os vizinhos seres humanos passam a ser admitidos. Os amigos humanos parabenizaram os porcos pelos métodos modernos de ordem e disciplina impostos. Os bichos não conseguem recordar-se se suas vidas seguiram conforme o prometido, se era melhor ou não na época do fazendeiro homem e não se surpreendem em escutarem as ovelhas balirem que " quatro patas bom, duas patas melhor!" Transcrevo o último trecho dessa curiosa fábula: "Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco." George Orwell foi um ferrenho defensor das milícias marxistas, até deparar-se com o horror do Stalinismo. Lutou na Guerra Espanhola,ao lado dos comunistas. Desiludido, escreveu essa obra, que só pode ser publicada em 1945, com o término da guerra. Com essa metáfora, o autor abre nossa percepção para o fato de que os ditadores, revestidos de forma a enganar os olhos desejosos do povo, apropia-se desses desejos, para manipular o próprio povo. Através do medo, da sujeição, da omissão e do uso das palavras corretas, conclui o seu domínio, escondendo-se detrás da face do personagem criado pelo desejo popular. A História sempre se repete, de forma cíclica. A revolução dos Bichos nunca foi tão atual. Canção dos Bichos da Inglaterra: Bichos da Inglaterra e da Irlanda, Daqui,dali, de acolá, Escutai a alvissareira Novidade que virá. Mais hoje, mais amanhã, O Tirano vem ao chão, E os campos da Inglaterra Só os bichos pisarão. Não mais argolas nas ventas, Dorsos livres dos arreios, Freio e espora enferrujando E relho em cantos alheios. Riqueza incomensuravel, Terra boa,muito grão, Trigo,cevada e aveia, Pastagem, feno e feijão. Lindos campos da Inglaterra, Ribeiros com aguas puras, Brisas leves circulando, Liberdade nas alturas. Lutemos por esse dia Mesmo que nos custe a vida. Gansos,vacas e cavalos, Todos unidos na lida. Bichos da Inglaterra e da Irlanda, Daqui,dali, de acolá, Levai esta minha mensagem E o futuro sorrirá. Márcia Taube

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O poema- Mário Quintana

Um poema como um gole d'água bebido no escuro. Como um pobre animal palpitando ferido. Como uma pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna. Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. Triste. Solitário. Único. Ferido de mortal beleza.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Free for all !

Nada nesse mundo deveria ser pago, principalmento se forem artigos de primeira necessidade. Nem comida, nem escola, nem moradia, nem saúde. Também os artigos de segunda e terceira necessidades deveriam ter preços simbólicos. Todos deveriam ter acesso ao supérfluo e mesmo ao luxo. Que nesse caso, deixariam de ser luxos, pois não teriam mais a conotação de exclusividade. Não posso convencer minha empregada a trabalhar de graça, nem o piscineiro, ou eles me deixariam na mão. O curso de inglês, a academia de ginástica e Karatê não aceitariam esse tipo de proposta, o sansei riria na minha cara, estou bem certa disso. Fazer a feira sem levar dinheiro está fora de cogitação, nem mesmo na hora da xepa. Isso tudo é desgastante e me dá um cansaço do mundo. A bolsinha da vitrine pode não ser indispensável, mas dá mais graça ao meu viver, e também a impressão de que meu trabalho não serve só para pagar as conta de luz e do cartão de crédito. Todos os cartões de crédito, aliás, deveriam ter margem infinita, e as faturas não chegariam nunca. Tudo pelo bem da humanidade. Não haveria mais fome nem ignorância no mundo, estando todos os bens de consumo e a cultura ao alcance de todos. As crianças, em sua inocência, estão cobertas de razão quando ao nos pedir determinado brinquedo que lhes é negado, sob a desculpa de "mamãe hoje está sem dinheiro", respondem dizendo: "Ué, usa o cheque!"-Eu também gostaria que fosse assim! Não sou a favor do básico. Sou favorável a todos os supérfluos que as crianças têm direito. Biscoitos recheados, iogurtes de morango, bonecos de última geração, livros de Monteiro Lobato, Mark Twain, Julio Verne. Além disso, cinema com pipoca, todos os picolés em lançamento e peças de teatro. Disney para todos, não devemos ter preconceitos para agradar á infância e fazer seres humanos mais alegres e preparados. Fora disso, a realidade é brutal. Se eu trabalharia de graça? E porque não, se todos fizessem o mesmo? Antes que vocês imaginem que estou louca, visitem estes sites de restaurantes, onde as pessoas podem comer de graça se não tiverem dinheiro para pagar, ou trabalhar de graça, para sentirem-se melhor com o mundo: http://www.soallmayeat.org/ http://www.lentilasanything.com/ Não são as únicas opções, inúmeros locais como esses estão espalhando-se pelo mundo. No RJ, mesmo já existe um restaurante onde a caixinha é aberta ao público. Quem pode, paga os 10%ou mais, quem não pode, tira o quanto precisa, além de não pagar a conta. Nenhum desses lugares até hoje teve prejuízo, sinal de que as coisas não estão de todo perdidas, e que algumas pessoas ainda acreditam na dignidade do ser humano. Viabilizar idéias aparentemente loucas também é uma forma de encarar positivamente a vida. O descabido pode ser muito viável, se todos assim desejarmos. Plantar uma semente de esperança na materialidade das coisas. Eu desejo. Beijos, Márcia .

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Florbelianas

FANATISMO "Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver ! Não és sequer a razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida ! Não vejo nada assim enlouquecida ... Passo no mundo, meu Amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida ! "Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..." Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim ! E, olhos postos em ti, digo de rastros : "Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..." Queridos amigos: isso não é de Fagner! Foi escrito em 1923 pela poetisa portuguesa Florbela Espanca. Seus lindos sonetos parecem ter sido escritos pedindo para serem musicados! "Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!" Nascida em Évora, linda cidade portuguesa, que tive a oportunidade de visitar há oito anos atrás, com suas ruinas romanas dedicadas á deusa Diana. Teve uma história de vida conturbada, desde seu nascimento. A mulher de seu pai não podia ter filhos e seguindo uma tradição medieval, os teve com outra mulher, que acabou deixando o a poetisa e seu irmão para serem criados pelo pai e pela madrasta. Melancólica, escreveu aos sete anos seu primeiro poema: A VIDA E A MORTE "O que é a vida e a morte Aquella infernal enimiga A vida é o sorriso E a morte da vida a guarida A morte tem os desgostos A vida tem os felises A cova tem as tristezas I a vida tem as raizes A vida e a morte são O sorriso lisongeiro E o amor tem o navio E o navio o marinheiro" Mas além disso, seus poemas tratavam simplesmente de amor. E foram necessários um amor maior do que o outro, para que, carregados de erotismo, pudessem ser escritos. Precursores do movimento feminista, foram um escândalo! SÚPLICA "Olha pra mim, amor, olha pra mim; Meus olhos andam doidos por te olhar! Cega-me com o brilho de teus olhos Que cega ando eu há muito por te amar. O meu colo é arminho imaculado Duma brancura casta que entontece; Tua linda cabeça loira e bela Deita em meu colo, deita e adormece! Tenho um manto real de negras trevas Feito de fios brilhantes d`astros belos Pisa o manto real de negras trevas Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos! Os meus braços são brancos como o linho Quando os cerro de leve, docemente... Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te Nessa cadeia assim etemamente! ... Vem para mim,amor... Ai não desprezes A minha adoração de escrava louca! Só te peço que deixes exalar Meu último suspiro na tua boca!..." A morte de seu pai, a perda de duas gestações, as muitas separações ,o falecimento precoce de seu irmão, agravaram o estado mental da poetisa, que acabou por suicidar no dia de seu aniversário. VAIDADE "Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade! Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a terra anda curvada! E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho...E não sou nada!..." Mas não quero terminar com esse poema tão belo e tão triste. Prefiro fechar com esse outro, que talvez seja o meu favorito: OS VERSOS QUE TE FIZ "Deixa dizer-te os lindos versos raros Que a minha boca tem pra te dizer! São talhados em mármore de Paros Cinzelados por mim pra te oferecer. Têm dolência de veludos caros, São como sedas pálidas a arder... Deixa dizer-te os lindos versos raros Que foram feitos pra te endoidecer! Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda... Que a boca da mulher é sempre linda Se dentro guarda um verso que não diz! Amo-te tanto! E nunca te beijei... E nesse beijo, amor, que eu te não dei Guardo os versos mais lindos que te fiz!" Grande Florbela Espanca!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

viver para contar

" No dia 10 de Julho de 1939, minha mãe deu á luz uma menina com um belo perfil de índia, e que foi batizada com o nome de Rita pela inesgotável devoção que tinham lá em casa por santa Rita de Cássia, baseada, entre outras muitas graças, na paciência com que ela superou o gênio ruim do marido extraviado. Minha mãe nos contava que esse marido da futura santa chegou certa noite em casa enlouquecido pelo álcool um minuto depois de uma galinha ter plantado sua cagadela na mesa da sala de jantar. Sem tempo para limpar a toalha imaculada, a esposa conseguiu tapar a caca com um prato para evitar que o marido a visse, e apresssou-se em distraí-lo com a pergunta habitual: -O que você quer comer? O homem soltou um rugido: -Merda. A esposa então levantou o prato e disse com santa doçura: - Está servida. A história conta que o próprio marido se convenceu na hora da santidade da esposa, e converteu-se á fé de Cristo." Quem diria, que Santa Rita, hein? Os livros desse autor são muito interessantes, um caso atrás do outro, a maioria inverossímeis, mas muito divertidos, mágicos. Esse trechinho também foi só para dar água na boca, para quem morar perto de minha casa e prometer devolver eu empresto: Viver para contar é o nome da obra; Gabriel Garcia Márquez, o autor que dispensa apresentações.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Oscar Alfaro-poeta boliviano

Atrás da Igreja que fica no centro histórico de Santa Cruz de la Sierra, existe algumas livrarias, que visitei para buscar uma encomenda. Um de meus professores havia me pedido um livro de poesias de algum escritor boliviano. Até então não me ocorrera ler nenhuma poesia boliviana, nunca me interessei por esse assunto. Mas conheci Oscar Alfaro, e gostei muito. Na verdade eu adorei Oscar Alfaro e acabei comprando um exemplar para mim também. O nome do livro é Romancero. Não tem páginas e sim uma coleção de cartões com imagens de flores e paisagens bolivianas, em cujo verso ele escreve, magistralmente. Copio dois, aqui, para dar água na boca de todos: CANCIÓN DE LA LLUVIA Sobre los techos parlantes cantaban los aguaceros, salpicando de diamentes los airecitos copleros. Y en los terrenos fragantes trinaban los durazneros entre mil lluvias radiantes de luces y de luceros. !Ay! Mi villita canora que desgranaba en la sierra sus versos color de aurora... !Cómo quisiera yo ahora oir cantar a mi tierra, bajo la lluvia sonora!... SEMBRADORA DE ESTRELLAS La aurora despierta pintando las sierras y cruza por ellas la moza labriega... Relumbra su cesta colmada de estrellas y enjoya la tierra con astros que tiemblam... Y cuando se incendian de luces las huertas, la moza morena termina la siembra. Oscar Alfaro. Não, infelizmente não está a venda pela internet. É necessário algum amigo que se aventure até A Bolívia...

História de Goiás

A curiosidade é o que me move, sempre pesquisando, para saber exatamente onde estive,onde estou agora. Que casas são as que vejo, quem morou ali, o que aconteceu com as pessoas de determinado lugar, quase como se ouvisse suas vozes, suas risadas e lamentos. A melhor maneira de se conhecer uma cidade histórica é em primeiro lugar , visitá-la fora da alta temporada. Além de mais barato, evita que as multidões lhe cansem os ouvidos e a vista, tirando o foco do que interessa. sair à noite, em companhia de alguém que também goste disso e embrenharem-se pelos becos e ruelas, ouvido os latidos dos cães, os televisores nas salas, o vento. No caso de Goiás Velho, eu e minha destemida mãe, vimos através de janelões abertos para a rua, o cotidiano simples das pessoas.Também as pessoas se punham, de cadeiras nas calçadas, para ver. Caminhamos pelo centro histórico, ruas pavimentadas de pedras, com todas as Igrejas fechadas, fomos até a Igreja Nossa Senhora do Rosário, em cujos portões haviam cadeados, infelizmente. Essa Igreja foi construída no lugar da Igreja dos pretos, derrubada na tentativa, talvez, de apagar a lembrança da segregação racial na casa de Deus. Vimos por fora o quartel do 20º Btl de Infantaria, iluminado, de onde soldados brasileiros saíram para a guerra do Paraguai. Aliás, guerra da Tríplice Aliança, como agora deve ser chamada. Saímos encantadas com o que vimos, com tudo o que gulosamente comemos, o arroz de pequi, as comidas que me fizeram lembrar um pouco as de Minas Gerais, principalmente a maneira de prepara o Leitão e também as quitandas, que são os biscoitos amanteigados, e os doces em caldas, feitos por inúmeras doceiras, que fizemos questão de visitar. Esta linda cidade foi berço da cultura goiana, nasceu graças á uma crença renascentista que dizia que as minas de ouro encontravam-se todas alinhadas ao Equador. Assim, tendo sido encontrado de um lado, as minas de Cuiabá e de outro, as de Minas Gerais, parecia óbvio que entre esses dois pontos também houvesse tal riqueza. Assim chegaram os bandeirantes, principalmente os paulistas, encontrando a nação de índios Goiá, que trataram de dizimar, para tomar posse de suas minas. O Arraial de Santana foi fundado em 1726 por Bartolomeu Bueno da Silva, que na realidade, já havia estado por aquelas bandas, na infância, acompanhado de seu pai o bandeirante tb chamado Bartolomeu Bueno da silva, mais conhecido como Anhanguera (diabo velho). Naquela primeira expedição, em 1682, reza a lenda que Bartolomeu pai encontrou índias goiáses com os cabelos ricamente adornado em ouro. Como elas se recusassem a contar a origem do metal, o bandeirante encheu uma cuia de aguardente e tocou fogo. Não satisfeito, disse à elas que se insistissem na recusa, iria colocar fogo em todos os rios e fontes dali. Apavoradas, não só revelaram as minas como também deram a ele o apelido com que foi conhecido para a posteridade. O filho de Anhanguera partiu de São Paulo ,aos quarenta anos de idade e vagou durante três anos no sertão do centro-oeste tentando reconstituir os passsos de seu pai, sem sucesso. Acabou por fundar o Arraial, que mais tarde foi elevando á condição de vila: Vila Boa de Goyás. Alguns séculos se passaram, até que Márcia e Maria Alice chegaram lá, procurando uma velha senhora que guardava o segredo da confecção dos alfenins. Batemos em sua porta e ela sem nos conhecer, como toda a gente boa de lá, nos convidou a entrar. Vimos então os bichinhos de açúcar, principalmente pombos e passarinhos de toda a sorte e compreendemos porque hoje em dia essa técnica portuguesa caiu em desuso. Dá um trabalho danado! Em sua sala estava também guardado o estandarte da festa do Divino, uma tradição que também chegou com os portugueses, mas isso também já é uma outra linda história! Márcia Taube

domingo, 3 de agosto de 2008

Conclusões de Aninha- Cora Coralina

Estavam ali parados. Marido e mulher Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça tímida, humilde, sofrida. Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho, e tudo que tinha dentro. Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar novo rancho e comprar suas pobrezinhas. O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula, entregou sem palavra. A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou, se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar E não abriu a bolsa. Qual dos dois ajudou mais? Donde se infere que o homem ajuda sem participar e a mulher participa sem ajudar. Da mesma forma aquela sentença: "A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar." Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada, o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso e ensinar a paciência do pescador. Você faria isso, Leitor? Antes que tudo isso se fizesse o desvalido não morreria de fome? Conclusão: Na prática, a teoria é outra.

Descoberta em Goiás Velho

Fiz em 2004 uma viagem à Goiás Velho com minha mãe. Eu, ela, nossas malas, um carro e um mapa. Tivemos oportunidade, entre outras coisas, de visitar a casa de Cora Coralina. Bem ali, à margem do rio Vermelho, entramos em sua casa simples, vimos sua cama de taipas, a cadeira de balanço que foi de seu pai, o fogão à lenha em que ela exercia seu ofício de doceira. Eu, que sempre fui fã de seus poemas, de seu linguajar simples, de suas histórias cotidianas, descobri que seu nome era na verdade Ana. Dona Ana. Aninha da casa do rio Vermelho. Descobri que ela só estudou até a quarta série, casou cedo e mudou-se para o interior de Sao Paulo. Pesquisei depois o que foi feito de sua vida: Seu marido ao falecer, deixou tres filhos. Para criá-los ela vendeu livros, fez linguiças e finalmente voltou para o colo de sua terra, para a casa que fora de seu pai e de seu avô. Aos 50 anos, nessa casa, disse ter experimentado uma transformação íntima, verdadeira e duradoura, um renascimento: a perda do medo. Assumiu o pseudônimo de Cora Coralina e publicou seu primeiro livro aos 75 anos. Consagrada como uma das maiores poetisas da língua portuguesa do séc xx, teve o reconhecimento ainda de Carlos Drummond, e quem somos nós para desdizê-lo, não é verdade? “Humildade Senhor, fazei com que eu aceite minha pobreza tal como sempre foi. Que não sinta o que não tenho. Não lamente o que podia ter e se perdeu por caminhos errados e nunca mais voltou. Dai, Senhor, que minha humildade seja como a chuva desejada caindo mansa, longa noite escura numa terra sedenta e num telhado velho. Que eu possa agradecer a Vós, minha cama estreita, minhas coisinhas pobres, minha casa de chão, pedras e tábuas remontadas. E ter sempre um feixe de lenha debaixo do meu fogão de taipa, e acender, eu mesma, o fogo alegre da minha casa na manhã de um novo dia que começa.” Cora Coralina

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A PASSAGEM- LEDO IVO

Quem nunca ouviu falar de LÊDO IVO, vai ouvir falar agora. Se bem que, acho difícil, sendo ele importante poeta e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. É dele o poemas que oferto: A PASSAGEM

"Que me deixem passar
- eis o que peço diante da porta ou diante do caminho.
 E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
 somente de mim mesmo acompanhado.
 Mas caso me proíbam de passar por seu eu diferente ou indesejado
 mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho".

Lêdo Ivo em "O Rumor da Noite"
Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro - 2000.

Eis também um trecho de uma entrevista que o poeta deu a um jornal (não sei qual) e que peguei de empréstimo para nós, aqui: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem.Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo,a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se."

Marginália II -Torquato Neto

Eu, braslileiro, confesso minha culpa, meu pecado meu sonho desesperado meu bem guardado segredo minha aflição eu, brasileiro, confesso aqui é o fim do mundo aqui é o fim do mundo ou lá aqui o Terceiro Mundo pede a bênção e vai dormir entre cascatas, palmeiras araçás e bananeiras ao canto da juriti aqui meu canto e glória aqui meu laço e cadeia conheço bem minha história começa na lua cheia e termina antes do fim aqui é o fim do mundo aqui é o fim do mundo ou lá minha terra tem palmeiras onde sopra o vento forte da fome, do medo e muito principalmente da morte 0-lelê, lalá a bomba explode lá fora e agora, o que vou temer? Yes: nós temos banana até para dar e vender aqui é o fim do mundo aqui é o fim do mundo ou lá. Torquato Neto foi poeta e compositor,nascido em Teresina, morou na Bahia e foi contemporâneo de Gilberto Gil na escola, escreveu letras em parceria com Gil, Caetano, Betãnia, Sérgio Britto e teve uma de suas letras musicadas pelos Titãs (GO BACK). Foi um defensor dos artistas de vanguarda e criou muitas polêmicas nos círculos culturais de sua época. Depressivo, matou-se um dia após completar 28 anos, ao voltar de uma festa de aniversário, com gás.

Paganini, o gênio de incomparável feiúra

Paganini, o incomparável violinista genovês, era de uma feiúra incomum, assustadora mesmo, cujo talento só fazia realçar. Certa vez, numa apresentação em Livorno, subiu ao palco manqueteando de uma perna, pois pisara num prego minutos antes. Para deleite geral, esbarrou na estante de partituras e espatifou um castiçal, a sala explodiu em gargalhadas. Feio como ninguém, com rosto magro, descarnado, nariz adunco, cabelos desgranhados, começou a tocar e rompeu-se uma corda. Uma tempestade de vaias sucedeu-se. Sem prestar atenção ao redor, continuou executando o recital com as três cordas que restavam, com tal ardor, imensa maestria, que ao final da apresentação, todos os presentes, estupefactos, aplaudiram de pé. Niccolò Paganini, aliás, ciente de sua feiúra imensa, tratava de adorná-la com uma sobrecasaca preta, que chegava até os pés e ousava comparecer ás cerimônias religiosas não apenas tocando, mas também parecendo-se fisicamente com o diabo, não tardou a ficar conhecido por ter parte com ele. No entanto, compunha obras sacras. Também não lhe favorecia o fato de que adorava acabar com as missas, através da execução de peças com assombrosa técnica, como numa Cerimônia na Catedral de Lucca, onde iniciou um concerto ao violino imitando pássaros, flautas, coro de anjos, trompas celestes ,etc. Diante da platéia estupefacta, manejou o arco com tal virtuosismo, que a missa acabou, pois ninguém conseguia concentrar-se em mais nada. Era comum romperem-se as cordas, pois tocava, de fato como um endiabrado, passional, alheio á tudo a seu redor. Em outra oportunidade, em um concerto em homenagem à irmã de Napoleão Bonaparte, romperam-se a segunda e terceira cordas. Como se não fosse nada, continuou tocando com as duas que sobraram, com tal virtuose que a platéia ficou boquiaberta. A princesa Elsa perguntou-lhe se uma corda bastaria para seu talento e ele demonstrou-lhe que sim, tocando quatro dias depois uma sonata composta para uma única corda, a sonata "Napoleão"! Paganini foi um anjo de talento incomparável. Seu modo agressivo de tocar, suas caretas, sua personalidade difícil, sua feiúra incomum, seus trajes estranhos ajudaram a criar a lenda que em certo cemitério na França, a aparição de um fantasma tocando violino, de uma forma que nenhum ser humano poderia fazer, adquiriu força e caiu no imaginário popular.Vários fantasmas idênticos ,rapidamente espalharam-se pela europa, após a morte do compositor, todos vestidos de sobrecasaca preta. Foi necessário exumar o corpo do falecido, trasladá-lo até a Itália, por concessão especial do Papa. Só assim, 56 anos depois de sua morte, o tal fantasma paganiniano sossegou. No entanto, muitas bandas ainda hoje imitam seu estilo, em especial as de rock pesado, onde o vestuário escuro, o modo de usar a cabeleira e até mesmo o gesto formado pelo indicador e o mínimo levantados, imitam inadvertidamente, o modo como tocava o mestre. Quantas bandas de rock já ouvimos, conhecidas por terem parte com o diabo? É o passado e o presente, se encontrando... Márcia Taube

Do homem que matou Deus


"Este...é agora o meu caminho...onde está o vosso?" Diz Zaratustra. "Assim eu respondi àqueles quem me fizeram perguntas sobre o caminho. Pois "o" caminho...não existe!"


Nietzche, Fredrich- Assim Falava Zaratustra

A Terceira margem do rio- Guimarães Rosa

Inscrevi-me na universidade para assistir uma aula extra, de dialética. Muito usada pelos gregos antigos, desde os filósofos pré-socráticos até Aristóteles, acabou caindo no esquecimento durante a idade média, até ser resgatada por Hegel, para um melhor entendimento da História, mas isso já é outro assunto. Para minha surpresa não me deparei com nenhum texto antigo, mas com Guimarães Rosa, num conto muito bonito, que eu desconhecia. Chama-se A TERCEIRA MARGEM DO RIO, e merece muito ser lido, pela beleza da linguagem coloquial, pelo vislumbre que proporciona ao leitor em toda aquela situação completamente fora de propósito, levando-nos a perguntar qual seria afinal, a terceira margem do rio? É belo, leiam, deêm suas opniões: "Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio." Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32.