quinta-feira, 31 de julho de 2008

"A solidão é a condição do ser humano no mundo. Todo ser humano está só. Esta é a grande questão da existência, mas não significa uma coisa negativa, nem que precise de uma solução definitiva. Ou seja, a solução não é acabar com a solidão, não é deixar de sentir angústia, suprimindo este sentimento. A solução não é encontrar uma pessoa para preencher o vazio existencial, não é encontrar um hobby ou uma atividade. A solução não é se matar de trabalhar e se concentrar nisso para não se sentir sozinho. Também não é encontrar uma estratégia para driblar a solidão. A solução é aceitar que se está só no mundo. Simplesmente isso. E sabendo-se só no mundo, viver a própria vida, respeitar a própria vontade, expressar os próprios sentimentos, buscar a realização dos próprios desejos. Quando se faz isso, a vida se enche de significado, de um brilho especial." Martin Heidegger (1889-1976)

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas

Que já têm a forma do nosso corpo

E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares

É o tempo da travessia

E se não ousarmos fazê-la

Teremos ficado para sempre

À margem de nós mesmos."


(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Mil Linhas

De tudo o que escrevo Sou as letras Que fluem eu das canetas. Faço da tinta energia para tornar-me poesia. Sou das linhas simples retrato cuja letra imprime rápido pensamento. Diário aberto que de mim faz ser quem mal expressa as milhares de coisas minhas. Mas que no dia-a-dia, no entanto, assinam meu nome nas linhas.

Mar guardado.

São dois navios, dois caudalosos rios. De um lado, de outro, a maré é amar. São dois brilhos duas estrelas entre os cílios. Talvez seja mar o que tenho abrigado são presságios de um recado. Eu os trago dois rios mais além que um mar guardado. Tenho um beijo aportado, carimbado. Nunca escorra de mim teu mar, pois são neles que navego, são os olhos, amor, que cegos, viajam de lá para cá.

Um apólogo- Conto de Machado de Assis



Este conto é uma delícia machadiana, que me fez lembrar a minha bisa. Talvez pelas palavras, antigas, expressões que ela também usava, ou quer seja pela figura da linha e da agulha, já que costurava, ou tricotava todo o tempo. Antes dos noventa, ela ainda nos contava histórias, fábulas, pequenos contos, enquanto desembaraçava o cabelo meu e de minha irmã.
Pode ser que tenha nos contado essa de fundo moral. Não me lembro. O fato é que ao relê-la, transportei-me imediatamente para aquela época, tão nítidamente pude ver seus objetos sobre a cômoda, o copinho de vidro recendendo a aniz, o pequenino radinho de pilha inglês, que ela tinha tanto ciúmes, o crucifixo de ferro e tive saudades da bisa Alice.
Mas enfim, o Apólogo:

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
-Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa nesse mundo?
-Deixe-me, senhora.
-Que a deixe? Que a deixe por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça;
-Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
-Mas você é orgulhosa.
-Decerto que sou.
-Mas por quê?
-É boa! Porque coso. Então vestidos e enfeites de nosssa ama, quem é que os cose, senão eu?
-Você? esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
-Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
-Sim,mas que vale issso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vema trás obedecendo ao que eu faço e mando...
-Também os batedores vão adiante do imperador.
-Você imperador?
-Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante,vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou á casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou o pano, pegou a agulha, pegou a linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana- para dar a isto uma cor poética.
E dizia a agulha:
-Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo , eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e altiva, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando.E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic-plic da agulha no pano.
Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro,até que no quarto a cabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
-Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
-Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
-Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Tomie Ohtake

Conheci a obra de Tomie Ohtake aos dezoito, através de uma pintura em tela ampla, pinceladas fortes, de forma espiralar, nas cores vermelha, azul marinho, quando fui conhecer o novo apartamento de meu primo. Ele havia comprado a tela num leilão, e disposto numa parede completamente branca, de pé direito duplo. Não faltava mais nada na casa. Até os móveis de aspecto minimalista pareciam ter sido feito sob medida para não brigar com a imponência da tela.
Interessei-me pela vida e pelo trabalho dessa japonesa, que conseguiu sua cidadania brasileira e que começou a pintar aos quarenta anos de idade. Pinturas, xilogravuras, esculturas...sua obra é completa e luminosa.
Penso que como ela, a maioria de nós pode ter a surpresa de descobrir seus talentos, muitas vezes de forma inesperada, em idade avançada ou em um tempo em que não se está mais preocupado com as coisas muito práticas da vida.
Quem se lembra daquele inusitado polvo amarelo de ferro, na Lagoa Rodrigo de Freitas?

O Lutador- Carlos Drummond de Andrade

Lutar com palavras é a luta mais vã. Enquanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas tão fortes como um javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas á carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.

Coroação de Nossa Senhora


Houve um tempo em que as crianças eram como anjos e sentiam-se honradas em coroar Nossa Senhora. O privilégio cabia à aluna mais aplicada, áquela sobre a qual não caberia sombra de dúvida: modelo de virtudes, a quem todas as outras deveriam imitar.
Com algum esforço, todas tratavam de mostrar á madre superiora que eram dignas de tal honraria. No mês de maio, os cadernos vinham impecáveis, as mal-criações diminuíam e as mães degladiavam-se.
Ao final da coroação, ficava uma impressão de que o mundo era bom e perfeito, que todas as crianças no mundo estavam protegidas, e almoçavam e jantavam em suas casas.
Hoje perdemos muitas ilusões, vemos que o tempo da inocência passou. Buscamos algum reduto onde possamos exercê-la longe dos olhos da sociedade, para não sermos ridicularizados. Em nossas casas, escondemos nossas crianças do mundo. Ou imaginamos prepará-los para esse mundo, em doses homeopáticas, através dos recursos didáticos que vamos inventando com o coração, sem nunca termos a certeza de que estamos fazendo a coisa certa.
Vez por outra me pergunto por onde andarão aquelas crianças, se conseguiram concretizar os planos de seus pais e os seus próprios desejos, sob a bênção de Nossa Senhora.

O pássaro que não socorri- Márcia Taube


Das muitas coisas que não fiz, a que mais me arrependo foi a de não ter socorrido um pássaro. Era tarde, eu voltava da pós e ainda tinha, pelo menos, uma hora de estrada pela frente. O pobre animal chocou-se contra o pára-brisa do meu carro, pensei que fosse uma pedrada. Mas pelos restos mortais, verifiquei que tratava-se de um passarinho, borrocado no vidro, um pedaço de pena. Mas não pude parar, está já morto, pensei. E segui meu caminho até a segurança da minha casa.No meio da noite acordei, ouvindo o grito do passarinho. Ele pedia socorro, caído no meio da estrada, no escuro, no asfalto. Mas já não havia o que fazer, eu de pijamas na sala, andava com o maior remorso do mundo. Acordei o marido, para não ter medo sozinha, e insisti que ele fosse comigo até lá. Até mais ou menos lá, nem sei bem onde, o pássaro agonizava. Você enlouqueceu, volta prá cama, ele disse, ainda são duas da madrugada. Mas eu não podia, a lembrança do que eu havia feito era horrível demais para me assossegar. Vendo que eu estava irredutível, ele cedeu: ao menos bota uma roupa, se amanhece as pessoas te pegam de pijamas...Companheiro, foi comigo caminho de volta, bem devagarinho a partir de um ponto imaginário, onde eu acreditava que encontraria o pobre bicho. Mas nada. Voltei muito triste para casa, tendo que suportar ainda um ligeiro mau-humor, infundado, do marido. Já era dia e a hora havia se imposto, para que déssemos nosso trabalho por encerrado.Durante meses não dormi, pensando nisso. Lá no quentinho da minha cama, debaixo do edredom, pensava no pobre pássaro que, inadvertidamente, matei. E não socorri, quando ainda podia ter feito a diferença.

Procura da Poesia- Carlos Drummond de Andrade

(...) Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-lo sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciencia, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Hora do Café- Márcia Taube

Às tres da tarde, pausa para o café. Na boca do fogão, a água ferve, para escaldar o bule e o coador de pano. As xícaras brancas, já arrumadas com as colheres e os pratos para servir o bolo de fubá com erva-doce. Desenformar o bolo, cobrir com pano de prato, novo, bem limpo. Coar sem pressa, como se usava fazer antes das coisas ficarem tão práticas. O cheiro envolve a casa, é hora de avisar ao povo que está pronto o café.-O que é isso, perguntam as crianças, espantadas com os apetrechos de roça, nunca vistos em nossa cozinha.-Coisas novas, mas muito antigas, que providenciei. Para vocês conhecerem o jeito como antes se fazia café, antes de existir a cafeteira...-Mas quem vai limpar toda essa sujeira?-É sempre a criança que faz essa pergunta!-Nossa mãe é muito esquisita...Mas ao acercarem-se do bolo, ao levantar o pano branco, mistura-se um novo aroma ao existente: o de bolo quente, recém desenformado.Acredito que toda mãe e todo pai, todo parente próximo que cuida de uma criança, tem a obrigação de ir criando nela memórias afetivas, que educam muito mais do que sermões. São tres da tarde, neste dia qualquer, na minha cozinha. As crianças querem saber se tem manteiga, de verdade.Depois do momento passado, as lembranças serão banais. Mas a recordação dos cheiros, o calor que emana das atitudes de quem é de casa, de alguma forma estarão ali.-Semana que vem vamos soltar uma pipa! Já passou da hora de vocês terem pipas!-Viva a mamãe!
PLATÃO- DEFESA DE SÓCRATES. Tradução de Jaime Bruna, Líbero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strzynsky- São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda; 1996.1 MÁRCIA VAZ DE MELLO TAUBE MARANHO2 A obra Defesa de Sócrates, escrita por Platão (428-348 aC.) é dividida em três partes distintas: na primeira, Sócrates apresenta sua defesa, na segunda, dialoga com seus acusadores, demonstrando que eles desconheciam o significado daquilo que o acusavam, e finalmente, Sócrates fixa a própria pena e é condenado. Para melhor compreender esta obra em toda sua dimensão, é necessário antes de mais nada, que nos voltemos ao contexto histórico em que ela se insere, para que nenhum detalhe nos passe desapercebido. Acredito que o “Século de Péricles”, idade de ouro da civilização ateniense, em que Sócrates viveu, foi um dos mais maravilhosos e criativos da história da humanidade. Atenas era o centro do mundo grego, para onde convergiam escultores, filósofos, pensadores, poetas e autores trágicos, sob a proteção de Péricles. Em meio a este caldeirão cultural e de experiências políticas, foi que houve a tentativa, pela primeira vez na história da humanidade, de um governo democrático. Havia uma valorização muito grande do poder da oratória, que era vista como arte. Os professores de eloqüência eram buscados para polir a linguagem e melhorar o discurso dos filhos das elites atenienses. __________________________________________________________________________________________________________ 1Resenha apresentada à disciplina de História Antiga, sob a rsponsabilidade do professor Marco Aurélio Machado Oliveira. 2Acadêmica do curso de História, CPAN/UFMS> ____________________________________________________________________ Sócrates acredita ter sido imbuído de uma “missão Divina”: despojar de pseudoverdades seus interlocutores, através do diálogo. Desta forma, afirmando sua própria ignorância a respeito de todas as coisas ,submete seus interlocutores ao método da ironia e da maiêutica e trava embates verbais com os sábios de sua época, terminando por deixá-los confusos acerca do que afirmavam e fazendo-os reconhecer a própria ignorância. Considerando-se um médico de almas, determinava quais pessoas estavam preparadas para receber o “tratamento”. Desta forma, angariou muitos inimigos. Além disso, discursava abertamente em praça pública, democratizando o saber, antes reservado ás classes abastadas. Para a democracia ateniense, que negava á maioria da população ( mulheres,escravos e estrangeiros) direitos políticos e sociais, tal situação constituía uma ameaça, por denunciar suas limitações. Dentro desse contexto, no ano de 399 a.C, Sócrates viu-se diante do tribunal dos heliastes, que era composto de cerca de 500 cidadãos atenienses sorteados, reunidos para julga-lo das acusações de não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. Seus acusadores eram Meleto, um poeta; Anitos, um político abastado e Lição, um personagem de pouca importância em sua época. Assim tem início, graças ao relato de Platão, uma das mais deliciosas obras da antiguidade clássica, muito embora nunca se saiba o que de fato foi dito por Sócrates e o que foi acrescentado pelo próprio Platão, seu fiel discípulo, fato este que tem sido alvo de inúmeros estudos pelos historiadores, e que, em minha opnião, torna a história toda muito mais curiosa e divertida. Ao defender-se das acusações, Sócrates parecia buscar defender algo muito maior, que era mostrar ao povo ateniense a ignorância a que estavam submetidos e que a busca pelo conhecimento era direito de todos. O que Sócrates defendia era a liberdade da busca pelo saber, livre de preconceitos, pelo povo ateniense. Sócrates rompe com os paradigmas de sua época dizendo que “(...)bom é, assim, o homem autoconstruído a partir de seu próprio centro e que age de acordo com as exigências de sua alma-consciência”. As mulheres, escravos e estrangeiros, dotados de alma-consciência poderiam, perigosamente, começar a reivindicar seus direitos. E, de fato, essa nova concepção de alma passou a dominar toda a tradição oriental. Uma das coisas mais curiosas, a meu ver, foi a forma pela qual Sócrates obteve autoridade moral para cumprir sua missão e que também não pode ser entendida fora do contexto de sua época: a pitonisa do Oráculo de Delfos. Esta, disse À Querofonte, seu discípulo, que não havia homem mais sábio do que Sócrates, que a partir desse episódio, tomou como missão de vida tentar desmenti-lo. Para tal, como vimos, interrogou os homens tidos como os mais sábios de sua época, sempre saindo decepcionado por ter percebido e feito com que eles percebessem que eram uma fraude. A inteligência e a argumentação convincente de Sócrates é para nós revelada nesse texto, em que temos prova da habilidade oratória experimentada pelos seus concidadãos, como um presente daquela civilização á nossa. Na primeira parte de sua defesa, por exemplo, em um diálogo delicioso de ser lido, Sócrates busca desqualificar Meleto através de uma argumentação analítica, em que demonstra ao povo ateniense que o próprio acusador desconhecia verdadeiramente o significado daquilo que o acusava. Mas é na segunda parte do texto que ao meu ver, reside a parte mais interessante da obra: a exposição do Sócrates histórico, por ele mesmo, onde não busca contestar Meletos e sim, contar a sua história aos atenienses. Essa segunda estratégia de Sócrates, que vendo-se condenado, expõe-se em sua humanidade, é particularmente encantadora. Sócrates vê-se diante de um dilema: tendo sido pedido para ele a pena de morte, poderá refutá-la, solicitando para si outra pena, tal como o exílio, ou uma multa. Sabendo que era essa a intenção, desde o início, de seus acusadores, e não desejando ser lembrado pela juventude por ter capitulado e assumido erros que não cometeu, diante da morte eminente, decide não fazer concessões e a abraça, causando o desconforto de seus acusadores.A democracia ateniense vê-se diante da situação irreparável de ter de condenar um inocente, diante dos olhos do povo. Em algumas partes deste discurso,especialmente a terceira, em que Sócrates despede-se do tribunal, fica muito clara a semelhança entre Sócrates e outra figura histórica: Jesus de Nazaré. Ambos, após uma vida dedicada á pregação e oratória, que consideravam ser uma missão divina, são condenados á morte por crimes que não cometeram e bebem desse cálice. O primeiro, de cicuta, o Segundo, Aquele que lhe foi reservado pelo Pai. Nenhum dos dois escreveu uma única palavra em vida, tudo o que sabemos deles foi escrito por seus discípulos e constituem a base de tudo o que sabemos a respeito de ambos. Sócrates, a exemplo de Jesus, no capítulo XXX, afirma não estar zangado com seus acusadores, nem com aqueles cujos votos o condenou, uma vez que para ele era melhor morrer agora e ser liberto das coisas deste mundo, pois esse era o interesse dos deuses. Nem um nem outro se furtam em abraçar a morte, sem temor. É belíssima a parte em que Sócrates discursa sobre o que a morte seria, uma noite sem sonhos ou uma passagem para outra existência, e em ambos os casos, maravilhosa. Só a existência destes últimos capítulos, a meu ver, já justificaria a leitura dessa obra: “(...)Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se,de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente.(...)Se, ao contrárario,a morte é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juizes, maior do que este?(...) Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade(...).” E despede-se dos presentes, dizendo: “Mas já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para deus.”

A HORA- Luís Fernando Veríssimo

O escritor inglês Aldous Huxley tinha uma teoria curiosa, a de que a maturidade de certos artistas não depende da sua idade cronológica, mas de uma espécie de precocidade misteriosamente programada para coincidir com uma vida curta. Ninguém pode dizer o que Mozart faria se tivesse vivido mais do que os trinta e poucos anos que viveu, mas ele dificilmente ficaria mais "maduro" do que já era. Os últimos quartetos de corda de Beethoven, considerados a sua obra mais perfeita, foram compostos pouco antes da sua morte aos 57 anos. Já Verdi morreu com mais de 80 anos, não muito depois de escrever oque dizem ser a sua ópera definitiva, Falstaff, e Goya teve que esperar a velhice e toda a sua amargura para produzir suas melhores gravuras e as fantásticas "pinturas negras" que nunca mostrou ao público, mas são o seu grande legado à história da arte e da consciência humana. A teoria de Huxley, improvável mas literariamente atraente, pressupõe um ceRto poder profético do artista. Shakespeare escreveu A Tempestade com 47 anos, sem saber que seria sua última peça (ele morreu com 52), mas ela tem o tom adequado de um testamento e de uma despedida, como mago Próspero, senhor de todos os dramas e tramas vistos sobre o palco, declarando seu sortilégio acabado e anunciando sua aposentadoria em Milão, onde cada terceiro pensamento será sobre sua sepultura. O final da peça é tão adequado que se suspeita que tenha sido acrescentado depois da morte do autor, mas pode-se imaginar Shakespeare, de volta a Stratford-on-Avon e acossado por maus pressentimentos, dando o mote para todos os artistas ainda por vir: quando pensamentos sobre a sepultura começam a se tornar muito frequentes, apresse-se e providencie seu legado definitivo. Está chegando a hora, não importa a sua idade. O poeta W.H. Auden, comentando a especulação de Huxley, levou-a ainda mais longe. Disse que os artistas morrem quando querem, ou quando devem, e que não existem obras de arte incompletas. Un po troppo, como se vê.

Para que serve mais um blog?

Concretamente falando, um blog serve para evitar que inúmeros livros ruins sejam publicados. Já li muitos poemas que não deveriam ter sido escritos. Eu mesma já escrevi poemas horrorosos, em que minha falta de talento ficava patente, por isso trato de escondê-los! Já os contos, gosto de alguns, dentre os que fiz. Ganhei alguns premios, e o que motivou a inscrever-me nos concursos, foi exatamente a oportunidade de receber, por exemplo, a coleção completa de Gabriel Garcia Marques. Apaixonei-me, de imediato, por Cândida Erêndira. Muitos foram os livros que me acompanharam, muitos autores descortinaram diante de meus olhos belíssimas estórias, que forjaram minha maneira de ser e enxergar o mundo. Por isso resolvi criar esse espaço, para trocar idéias, sugerir não só leituras boas, mas boas visitas a lugares imperdíveis, passeios culturais, enfim, direcionar assuntos àqueles amigos que também compartilhem desse gosto, deixando de chatear os demais! Afinal, nem todos os nossos amigos merecem a nossa chatice, só os muito, muito chegados!